Gustavo Meneghim
"Apesar de ter sido proibida por lei aos imigrantes a utilização e posse de escravos na Colônia Dona Francisca (atual Joinville), encontramos um indício inequívoco que denuncia a prática da escravidão entre os colonos germânicos. Trata-se do caso de Felizarda, africana, falecida em 1880 com "mais ou menos" 45 anos, escrava de Gustavo Seiler, um dos mais ricos comerciantes locais e feitor do engenho de erva-mate de Eduard Trinks. De Seiler, sabe-se apenas que foi nascido na Suíça e que era primo do primeiro prefeito de Joinville, Ottokar Doerfel".
Este, entre outros, são casos relatados com detalhes no livro "História do trabalho em Joinville - Gênese", lançado na última quinta-feira (5) e que desfaz diversos mitos sobre o trabalho em Joinville, entre eles o de que nenhum imigrante germânico da colônia possuía escravos, ou de que a prática da escravidão se limitou às famílias luso-brasileiras da região.
O autor e historiador Dilney Cunha, em sua minuciosa pesquisa, expõe as condições de trabalho e lança um olhar sobre o trabalho entre imigrantes europeus e de outras etnias desde a fundação de Joinville até o início do século 20.
Como ponto de partida, o autor revela em detalhes as condições paupérrimas e desumanas em que viviam as famílias do Cantão Schaffhausen, principal local de onde saíam os suíços que imigraram a Joinville. Para se ter uma idéia, no ano de 1853, bem no início da colonização, naquela região, dos 35.309 habitantes, 11.487 (32%) não obtiveram nem as condições mínimas de existência, e 150 indivíduos morreram de fome.
Se não bastassem as péssimas condições, a política da época pressionava a imigração utilizando-se do viés ideológico que colocava aqueles suíços miseráveis na condição de "desleixados e preguiçosos" e responsabilizando os próprios pobres pela sua situação de miséria, livrando assim o Estado de qualquer responsabilidade. A condição de pedinte ou mendicância, segundo as leis da época, comumente tornava o destino dos pobres a prisão. O livro conta, sem pudores, que a imigração consistiu em uma "solução" para o problema: enviar todo este contingente de pessoas em situação de miséria para a América.
Objetivo principal do livro é mostrar a diversidade étnica existente em Joinville
Um texto da época relata: "Este ano emigraram daqui para o Brasil seis famílias, aproximadamente 21 pessoas. Os pais destas seis famílias pertencem sem exceção à classe mais desleixada e dos quais quase nada de bom pode se esperar (...) talvez esses preguiçosos maltrapilhos achem seu sustento melhor na América do que aqui."
Destes e de outros fiéis relatos, podem os leitores tirar suas próprias conclusões, já que o autor explica que "o pior defeito de um historiador seria tomar partido deste ou daquele grupo. Na verdade, o que se pretende é trazer à tona as informações com a maior precisão possível".
E um dos principais objetivos do livro é mostrar a diversidade étnica existente aqui, assim como em qualquer lugar, bem como diversas situações conflitantes entre relações de trabalho e entre etnias. Estas "descobertas" mudam para sempre, a partir de agora, a imagem de "colônia harmônica" que nos foi imposta pela história oficial contada a partir da visão do colonizador.
Os primeiros trabalhos exercidos aqui, na então Colônia Dona Francisca, foram o desmatamento para a abertura de picadas, a construção de casas e atividades artesanais. Deve-se notar que o trabalho não era executado exclusivamente por estes imigrantes europeus, já que aqui estavam instalados há muitos anos os luso-brasileiros que já conheciam bem a região.
Já no ano de 1856 havia aqui uma forte tendência à produção do artesanato, comércio, exportação de madeira (que foi a primeira grande fonte de renda da região), seguida da produção e exportação de erva-mate e de cana-de-açúcar, cuja usina em Pirabeiraba abastecia todo o país. Nesta época ainda não havia leis para o mercado de trabalho e as piores condições tornavam-se as únicas oportunidades para muitos que durante os primeiros anos não conseguiam obter em sua propriedade agrícola o necessário para o sustento. Adultos e comumente crianças enfrentavam longas jornadas em trabalho pesado em um regime de emprego que apenas diferenciava-se do trabalho escravo por não serem aplicados castigos físicos.
Este livro será o primeiro de uma trilogia sobre o trabalho e o período de abrangência vai até a primeira década do século 20, período anterior à industrialização de Joinville. O livro pode ser encontrado na Livraria Midas, na Rua João Colin, 475.
A difícil vida das minorias
A região de Joinville já contava com escravos desde o início das Sesmarias (latifúndios de luso-brasileiros) onde por volta de 1850 existiam em torno de 60 a 70 escravos. Entre a população local, também existiam diversos escravos libertos e outros "emprestados" a imigrantes da região e que realizavam todo o tipo de oficio, de barqueiros, artesãos a criados. O próprio Inácio Lázaro Bastos, telegrafista, jornalista, teatrólogo, professor e uma das principais lideranças republicanas da região (vide rua Inácio Bastos), chegou a Joinville nesta época, proveniente da Desterro (Florianópolis) com sua escrava.
Na Colônia Dona Francisca existia um verdadeiro apartheid (separação exclusiva de negros), que eram proibidos de freqüentar qualquer um dos clubes que brancos freqüentavam.
A segregação racial, segundo o livro, era motivo de orgulho dos ditos "alemães" que se viam como exemplos de civilização e que entendiam que os não-alemães eram preguiçosos e menos aptos ao trabalho.
"Deu muito trabalho. Com racionalidade nada se conseguia dele. Como na ocasião estava atrasada uma remessa de seu dinheiro de casa, e ele por isso me devia algo, consegui, com um embargo fingido, intimidá-lo de tal maneira que desistiu de sua "Negra Berta". Este foi o relato do pastor evangélico Wilhem Lange, líder de uma comunidade no interior de Joinville, que procurou evitar a todo custo que um nobre um tanto rebelde que estava sob sua tutela, o conde von Hasslingen, se casasse com uma negra da região.
São diversas as passagens no livro que mostram claramente como eram tratados e como se dava a relação de trabalhos entre indivíduos não-alemães, embora a grande maioria, entre negros, caboclos e mesmo imigrantes europeus eram vítimas da exploração das oligarquias e pequenos ciclos do poder local instaurados na antiga colônia, que "dentro desta perspectiva, surgiu como um empreendimento privado capitalista, com apoio oficial, destinado principalmente a gerar dividendos para seus proprietários".
A saga da imigração vira filme
Em 2006, Dilney Cunha recebeu a proposta de uma empresa cinematográfica de Curitiba interessada em transformar em filme o seu primeiro livro: "Suíços em Joinville – O duplo desterro", de 2003. Foi através deste livro que pela primeira vez foi desvelada com detalhes a verdadeira saga dos imigrantes suíços que aqui chegaram.
A obra contou, além da obstinação do autor, que percorreu a arquivos históricos locais e na Suíça, com o conhecimento da língua alemã, fundamental para decifrar os escritos em alemão arcaico onde constavam os registros de imigração consultados para o livro.
Durante a pesquisa foram encontradas diversas cartas que escapavam a uma censura pela companhia de imigração e acabavam chegando à Suíça, e que relatavam a grande decepção dos colonos imigrados e a grande dificuldade de um cotidiano árduo encontrado aqui.
Após a publicação em Joinville, o interesse dos suíços nesta obra foi imenso, tanto que foi justamente um deputado federal da Suíça que fez questão de traduzir a obra para o alemão, fato que rendeu uma tradução no mesmo ano e a Dilney diversas homenagens naquele país.
A captação de recursos para as filmagens de "Suíços em Joinville" foi aprovada no início do ano através da Lei Rouanet de Incentivo a Cultura e está em fase de escolha de locações e busca de apoio entre empresas privadas para em breve levar às telas de cinema um retrato um tanto quanto fiel de nossa imigração.
Serviço: O quê: Lançamento do Livro "A história do trabalho em Joinville", de Dilney Cunha Onde encontrar: Livraria Midas, rua Dr. João Colin, 475.
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Há 13 anos
Um comentário:
Muito interessante e de leitura fácil e envolvente. Dilney escreve para comunicar-se com o leitor e não apenas para mostrar conhecimento da área. Ótimo! Porém, onde estão os documentos, gravuras e registros do período pré-colonização germânica? Ok, os germânicos se adaptaram e fincaram raízes aqui num momento em que o mundo passava por transformações, inclusive com relação a horrenda escravidão. Mas, se os lusos já estavam aqui onde estão os registros, jornais, gravuras etc., do período das Sesmarias e seus coronéis aqui em Joinville? Gostaria muito de ouvir e ler algo a respeito, afinal, eles foram os verdadeiros desbravadores desta terra, ou não? Já foi feito algum esforço pelos eruditos de nossa cidade nesta direção? Sucesso, Jane.
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